quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Memórias 11

Como na Várzea, eu comecei por passar grande parte do tempo em casa de vizinhas (“passar, passava, mas não era a mesma coisa!” -como diz o anúncio-, do que era na Várzea, de onde nunca deixei de ter saudades).

Ia muito para casa da Menina Maria, mulher do Sr. João Novo, cuja casa ficava mesmo em frente da nossa casa, e para “cazeta”, assim se chamava a casa da funcionária da CP, a Sra. Emília, que não era daquela zona. Penso que era da Beira Alta. Dela ouvi algumas histórias sobre as dificuldades que tinha passado. Nunca me esqueci de ela contar ter muitas vezes chorado por não ter um bocado de pão, que fosse, para dar os seus filhos.

Essa era uma realidade completamente desconhecida para mim. Embora os meus pais tivessem, na altura, dificuldades económicas, nunca nos faltou na nossa alimentação do que melhor havia, e as pessoas da Sapataria, embora não tivessem o mesmo tipo de alimentação, não tinham aquele tipo de problemas. Era uma economia de subsistência, mas uma subsistência sem carências.

Depois da Sra. Emília se reformar, foi substituída por outra senhora, a senhora Adelina, e embora esta não fosse uma pessoa de quem gostasse muito, para ali continuei a caminhar. E tenho grande nostalgia das flores dos canteiros da “cazeta”: rapazinhos, como lá se chamavam, e que já consegui ter na Ribeirinha, e uma espécie de malmequeres muito pouco vistos, e que também gostava muito de ter. E está também bem presente na minha memória a entoação que elas davam quando pronunciavam o “45,1”, quando atendiam o telefone que avisava da passagem do comboio ( 45,1 Km de em relação a Lisboa. Na estação dos Caminhos de Ferro era o 45,8).

Era no tanque do poço da “cazeta” que eu, embora o meu pai tivesse montado, a certa altura, uma espécie de chuveiro na nossa casa de banho, que eu tomava ricas banhocas, nessa altura, lembro-me, já em fato de banho.

Também no terreno sobranceiro ao poço, apanhava, nos grandes silvados que o bordejavam, do lado que dava para a linha do comboio, apanhava, e a partir de certa altura das férias, Julho ou Agosto, grandes e doces amoras.

Uma noite já casada e a viver aqui no Dafundo, ouvi o apito de um comboio (é raro, mas acontece). Senti, então, uma súbita e inexplicável sensação de bem-estar. Fiquei perplexa, mas de imediato percebi que aquela sensação estava ligada aos comboios dos Galegos. Engraçado que, mais tarde, quando li o”Em busca do tempo perdido” do Proust, encontrei a descrição desta mesma situação, não sei se a propósito do odor ou do paladar, ao comer uma madalena.